quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O caso Nardoni: o testemunho da prova científica (ou “O mito do conhecimento objetivo”)

“Nada é mais importante que ver as fontes
da invenção que são, em minha opinião, muito
mais importantes que as próprias invenções”
(Leibniz)

Começo este artigo dizendo que, em nossa sociedade, a ciência virou um mito. Os reflexos dessa crença se manifestam, principalmente, quando se acredita que os produtos do conhecimento científico são inquestionáveis, gerando um comportamento dogmático ante o próprio ato de conhecer. O recente julgamento do casal Nardoni, acusados de matar a pequena Isabela, esganando-a e jogando-a do 6º andar de um edifício na Cidade de São Paulo, exemplifica categoricamente essa postura do homem moderno. Desde o promotor do caso, que tinha pleno domínio dos autos, ao mais desinformado dos cidadãos brasileiros, todos estavam convictos de que a sentença condenatória foi justa, afinal as provas periciais não deixaram dúvidas sobre a autoria do crime. Ficou explícito que ante a “manifestação da ciência” não há discussão possível.

Mas, uma coisa é a decisão condenatória, outra é a verdade dos fatos. A verdade não tem relação necessária com os autos, nem com a sentença. À revelia dessa questão de natureza epistemológica, os jurados cumpriram o papel que lhes foi delegado: decidiram. E o fizeram segundo critérios predominantes na sociedade. Acreditaram na veracidade das provas científicas apresentadas. Todos consideraram que o conjunto apuratório foi convincente, mesmo sem a confissão dos réus e a existência de testemunhas oculares. A justiça teria sido feita.

No entanto, sejam os réus culpados ou não, não me proponho a contestar os resultados obtidos pela investigação e referendados pelo juri, mas, antes, analisar o caminho percorrido para a elaboração da teoria que, aos olhos da população tupiniquim, pareceu ser a correta. Mais que a análise dos resultados obtidos, compreendemos melhor um discurso quando trilhamos o caminho de sua elaboração.

Partamos, pois, dos fatos, ou melhor, do fato primordial: a precoce morte da vítima. Os réus, em juízo, negaram qualquer participação para a produção desse resultado. Sugeriram, naturalmente, a hipótese da terceira pessoa, que, não tendo sido identificada, se desvaneceu.

Ora, nessas ocasiões, o que faz o investigador policial? Constrói hipóteses, segundo esquemas de funcionamento da realidade, que entende serem possíveis de ocorrer. Como pano de fundo da sua construção intelectual está a crença de que o mundo é racional e cognoscível, isto é, opera segundo uma ordem e é capaz de ser apreendido pelo pensamento. Assim, é comum, em situações como essas, dizer: “acredito que o crime teve motivações políticas”, “foi queima de arquivo”, “crime passional”, “foi motivado por uso de substâncias tóxicas”, etc. Enfim, o nosso “cientista”, diante dos elementos preliminares, sugere como o acontecimento - que por ele não foi presenciado - ocorreu, como se a experiência obtida com os casos anteriores lhe conferisse certa autoridade para supor o que teria ocorrido no caso presente. Talvez a lendária figura de Sherlock Holmes nos faça crer, além do razoável, no poder dedutivo do intelecto humano.

Antes de qualquer coisa, é preciso considerar que o investigador tem uma reputação a ser preservada e ela repercute diretamente em seu desempenho funcional. Promoções, nomeações, condecorações, etc., são concedidas, normalmente, em função da maneira como se comporta no exercício do cargo. No mesmo rastro, governantes – mas, por questões políticas - também possuem interesse na solução dos crimes que ocorrem em sua circunscrição, principalmente quando o delito, por uma razão qualquer, ganha publicidade acima da normal. Não encontrar o criminoso é atestado expresso de incompetência e ineficiência do poder público, podendo gerar reflexos emocionais e comportamentais na comunidade onde o fato ocorreu. Em qualquer hipótese é sempre conveniente "encontrar" o transgressor, tenha ele “cometido ou não o delito”. Quando os fatos que repercutem no meio social são desvendados, todos ficam felizes, menos, é claro, as vítimas e os possíveis autores do crime. Eis o porquê de a movimentação do aparato estatal nunca ser isenta ou imparcial.

Existindo, pois, motivação para solucionar o caso, era preciso buscar os provas que confirmariam, pelo menos, uma hipótese de como o crime ocorreu. Um fato só tem significação na medida em que acrescenta ou diminui a plausibilidade de uma teoria. No crime da pequena Isabela, os investigadores não encontraram uma terceira pessoa, logo não seria produtivo seguir esse azimute. Não basta explicar o crime, é preciso, do ponto de vista do imaginário coletivo, identificar e prender o criminoso para saciar o sentimento de justiça. A precariedade das informações iniciais não constituem o problema. O DESCONHECIDO é o objetivo maior de todo pesquisador. O inquérito, como toda investigação, busca o invisível e as teorias são enunciados sobre esse invisível. Este é o problema crucial da persecução da “verdade”. É preciso recorrer à imaginação para construir a realidade.

Todo trabalho intelectual não parte dos fatos, mas de um modelo de funcionamento dos fenômenos. No caso Nardoni, tanto os policiais como os peritos partiram de um esquema prévio para, em seguida, buscarem os dados necessários às suas confirmações, como um quebra-cabeça cuja figura já se conhece, mas que carece das peças para a sua construção. Esse modelo, criado pelo próprio homem, foi utilizado na elaboração da teoria que, em termos jurídicos, chamamos de processo. É nesse sentido que Immanuel Kant, filósofo alemão do séc. XVIII, afirmou que jamais conhecemos a coisa em si (o noumenon), apenas o fenômeno, isto é, aquilo que se apresenta a capacidade cognitiva do sujeito. Não somos capazes de conhecer a essência das coisas, apenas as suas aparências. Diz o filósofo: “A razão só pode compreender aquilo que ela mesma produz de acordo com um plano que ela mesma elaborou. Ela se aproxima da natureza não como um aluno que ouve tudo o que o professor se decide a dizer, mas como um juiz que obriga a testemunha a responder questões que ele mesmo formulou”.

Partindo dessa premissa, podemos dizer que tanto os investigadores policiais, como os peritos criminais, inexoravelmente, lançaram mão da IMAGINAÇÃO no curso do trabalho de elucidação do crime. Eles utilizaram armadilhas intelectuais, segundo o entendimento que tinham a respeito do movimento de suas presas. O que torna alguém um bom caçador não são os instrumentos utilizados durante o ato de caçar, como espingardas, revólveres, facas, arapucas, etc. – eles são fáceis de adquirir –, mas o conhecimento que o sujeito possui de como a caça se comporta. As teorias são como malhas que os caçadores lançam para pegar o animal que lhes interessa. Por isso um bom caçador conhece os hábitos de sua caça, o que lhe permite apostar na maneira como ela agirá, permitindo-lhe traçar uma estratégia para capturá-la.

Com fim exclusivamente pedagógico utilizarei uma alegoria para elucidar o raciocínio aqui exposto. Imaginemos, inicialmente, um crime praticado com arma de fogo. Tem-se a vítima, o acusado e a arma que teria sido utilizada para a sua efetivação. O investigador policial reúne esses elementos em um contexto significativo. Depois encaminha a arma, a vítima e o acusado para perícia, elaborando os quesitos que, segundo o seu esquema teórico, são capazes de esclarecer o delito. A partir desses elementos o perito vai aferir se o projétil encontrado no corpo da vítima é compatível com a arma apreendida, se existem fragmentos de pólvora nas mãos do acusado, a possível distância do disparo, etc. Neste caso, o desvelamento do ocorrido foi facilitado pelas circunstâncias encontradas e facilmente organizadas num corpo teórico explicativo, cabendo ao perito apenas confirmá-las para a conclusão do processo apuratório. Se houver COMPATIBILIDADE dos elementos coletados o perito poderá responder, com "valor de verdade", aos questionamentos formulados, confirmando a explicação elaborada pelas autoridades policiais. Consideremos agora outra hipótese: o mesmo crime foi praticado, porém, sabem-se apenas quem foi a vítima, mas o autor e a arma não foram localizados. Durante a investigação, dez pessoas foram detidas para averiguação. Todas dispararam um revólver no mesmo horário do crime, porém de calibre diferente ao utilizado pelo assassino. Além disso, todos os suspeitos apresentaram álibe convincente e não possuem, a priori, motivações para praticar o ato delituoso. Neste caso, sem um contexto favorável para a elaboração de uma teoria de como os fatos se deram a investigação se depara com um impasse, cuja solução exigirá extrema habilidade dos investigadores. Desconsiderando a má fé dos agentes, a "elucidação" do crime, neste caso, dificilmente será conclusiva, como no primeiro caso. Isso porque as "mensagens" encontradas na cena do crime não disporão de um modelo para serem devidamente organizadas. Em outras palavras, o quebra-cabeça dificilmente será concluído.

O senso comum concebe as teorias científicas como produtos acabados, certos e racionais, desprezando o processa mágico de suas produções. É na elaboração das explicações dos acontecimentos que podemos compreender quão frágil são as teorias que são tomadas como verdadeiras, pois se ignora o expressivo papel da imaginação nesses processos. Acredita-se na ciência como o "conhecimento objetivo" por excelência.

No caso Nardoni a perícia foi determinante para a condenação do casal. As manchas de sangue no apartamento, recuperadas com produtos químicos; a identificação de marcas na camiseta do réu; a cronologia dos fatos; as marcas no corpo da vítima sugerindo esganadura e outras lesões (causa principal da morte), além de outros traumas decorrentes da queda do sexto andar. Tudo foi encaixado num corpo teórico capaz de produzir o sentido necessário à investigação criminal e o conseqüente amparo para a promotoria de justiça requerer a condenação do casal. Ocorre, porém, que tanto a investigação como a perícia são procedimentos que não asseguram, por si sós, a verdade do acontecimento. São interpretações, e como toda interpretação tem mais do sujeito que a realiza que do fenômeno analisado. As testemunhas do caso foram criadas pelos instrumentos tecnológicos como se eles pudessem viajar no tempo e registrar o crime em sua nudez objetiva. Assim, a tese apresentada pela acusação, durante o julgamento, venceu. Os réus foram condenados. Como eles não foram confessos e não foram arroladas testemunhas (humanas) oculares do fato, a perícia se encarregou de decifrar o enigma e nos contar aquilo que é apanágio dos deuses: a verdade. E quando se acredita que se possui a verdade, não há argumento possível.

Como a ciência se tornou inquestionável em nossa sociedade, vou recorrer ao conhecimento “incerto e duvidoso” por excelência: a ARTE, para concluir este artigo. lembrei-me do filme “A vida de David gale”. Gale é professor e ativista político contra a pena de morte nos EUA. Acusado de estupro e assassinato, é julgado e condenado à pena capital. No final surpreendente, descobre-se que ele é inocente, contrariando as provas constantes nos autos. Esse filme, como toda obra de arte, nos ajuda a pensar sobre a precariedade das TEORIAS humanas, quer científicas, religiosas ou filosóficas, principalmente quando estão no bojo de um processo judicial.

“Nós não conhecemos. Nós só podemos dar palpites” (Karl Popper).

Nenhum comentário:

Postar um comentário