domingo, 22 de setembro de 2013

Foucault e a educação de si mesmo (Ou: “Uma pedagogia da liberdade”)

“Ninguém vai me ver sofrer
Ninguém vai me surpreender
Na noite da solidão
Pois quem
Tiver nada pra perder
Vai formar comigo o imenso cordão


E então
Quero ver o vendaval
Quero ver o carnaval
Sair
Ninguém
Ninguém vai me acorrentar
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder sorrir
Enquanto eu puder cantar”
(Cordão – Chico Buarque)

Introdução
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O pós-modernismo pode ser explicado, grosso modo, pela descrença nas METANARRATIVAS humanas, sejam filosóficas, religiosas, científicas ou de quaisquer outros tipos. Uma meta-narrativa é um discurso com o qual se tenta justificar outro discurso. A construção de uma ponte, por exemplo, pode ser explicada pela Ciência, mas quando o homem tenta explicar o porquê que tê-la construído, ingressa no campo dos metadiscursos. Nesse contexto, a pós-modernidade não é simplesmente um fenômeno temporal, mas uma condição que se caracteriza pela tentativa de destruição desses tipos de discursos.
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Foucault é considerado um filósofo pós-moderno porque ele combate uma meta-narrativa construída na modernidade: a do sujeito, enquanto aquele que, ao praticar uma ação, é considerado livre, consciente e responsável.
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Para o filósofo, o sujeito tem o seu estatuto ontológico questionável. Por isso não seria correto dizer, por exemplo, que “devemos educar as crianças para que elas criem a própria história”, visto que, ao revés, seria a história, com seus feixes de relações de poder, que institui interinamente os sujeitos. 
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Essa crença no sujeito como algo autônomo e estável ocorreu, segundo Foucault, em razão da subjetividade da ética moderna. A ética do DEVER (Kant) parece objetiva, mas, de fato, seria subjetiva, posto que o dever reside na consciência do sujeito, dando a impressão de que ele é capaz de comandar as próprias ações. Essa forma de pensar o sujeito, como aquele que PENSA, FALA E PRODUZ não passaria de mais uma invenção da filosofia moderna. A rigor ele seria pensado, falado e produzido.
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Para desconstruir essa visão metafísica do sujeito, Foucault empreende uma pesquisa histórica que o faz crer que, em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações, instituindo um indivíduo obediente que é produzido e sustentado por um poder pouco notado e difícil de denunciar: um poder que circula através dessas pequenas técnicas, numa rede de instituições sociais tais como a escola.
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Sobre o sujeito e a liberdade: “não há relação de poder entre sujeitos livres”
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Foucault não cansou de reafirmar o objeto maior dos seus estudos: as relações do sujeito com a verdade, isto é, a maneira como as verdades construídas em determinados momentos históricos produziram diversos tipos de sujeitos. Por isso, segundo o filósofo, “não existiria relação de poder entre sujeitos livres”, pois, sendo o sujeito um produto de um saber/poder, necessariamente ele não seria livre, e, logicamente, sequer seria sujeito.  
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Mas o filósofo não trabalhou com a noção de sujeito transcendental, possuidor de uma essência perene, mas como algo que decorre do processo histórico. Também investigou sob quais condições surgiu a crença de o sujeito possuir consciência e liberdade, enquanto atributos que lhe permitem exercer o poder, mas, ao contrário, considerou que é o poder que o forma. Em outras palavras, os sujeitos seriam espécies de núcleos de poder que existem no universo, seja enquanto indivíduo, classe social, governo político ou qualquer coisa que exerça o comando.
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O sujeito não serial algo essencial e constante, mas fruto de uma trama de poder existente no mundo humano. Logo, possuiria natureza relacional e dependeria das tecnologias de controle desenvolvidas. Na Modernidade, o papel de mando teria, segundo o filósofo, sido transferido para as instituições, que o exerceram por meio de mecanismos disciplinares, com os quais vincularam os indivíduos a certas identidades, fazendo-os DÓCEIS, ÚTEIS E PRODUTIVOS.
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 Sobre a DISCIPLINA (Ou: como ser “fiscais de si mesmos”).
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 Foucault investigou o poder dos reis sobre o corpo dos súditos, depois as penas proporcionais e o aprisionamento – momento em que surgiu o inquérito e a punição deixou de ser imediata e pessoal -, até a disciplina, que seria a generalização do poder de punir.
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A disciplina possui o seu fundamento no desenvolvimento de uma tecnologia ligada a novas formas de relação de poder que se estabeleceu a partir do Séc XIX, principalmente no âmbito de certas instituições, como a prisão, exército, escola, hospital, etc., para que o exercício do poder fosse menos custoso, tivesse o máximo de intensidade e melhorasse o rendimento dos aparelhos institucionais, tudo em consonância com os interesses da nova classe que se instalava no poder: a burguesia.
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A disciplina não é o tipo de dominação que restringe, apropria e conduz o indivíduo, mas preserva-lhe certa liberdade. O método da coerção aparente e constante, próprio da escravidão, domesticidades, vassalagem e ascetismo, não eram producentes do ponto de vista econômico, logo se instituiu uma política de coerções sutis para gerar a obediência querida. 
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Assim os indivíduos criaram uma falsa idéia da liberdade, a partir do momento que foram considerados um produto da ação disciplinar, construídos para pensar que são livres e autônomos. Com o advento da disciplina houve uma mudança radical na forma de punição. A sanção não se tornou mais branda nem menos efetiva, só deixou de atuar diretamente no corpo e passou a ser aplicada na alma visando a submissão por meio de três mecanismos: A vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.
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A vigilância hierárquica, principalmente a partir do séc. XIX, objetivou permitir uma completa observação das atitudes humanas. As instituições se tornaram verdadeiros laboratórios onde essas técnicas foram implantadas gradativamente, tendo como princípio o escalonamento do exercício do poder nos diversos níveis hierárquicos existentes. Os níveis mais altos fiscalizavam os mais baixos.
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A vantagem dessa tecnologia é a sua capacidade de não ser necessária a observação constante, mas a consciência de visibilidade que ela suscita, assegura a continuidade dos seus efeitos, mesmo que as ações fiscalizadoras não sejam constantes.
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Um clássico exemplo desse mecanismo de tecnologia disciplinar é o Panóptico de Bentham, que é uma edificação em forma de anel na periferia do conjunto com uma torre situada estrategicamente no centro. Daí as disposições das carteiras escolares, dos leitos hospitalares, das máquinas nas fábricas, dos acampamentos militares e das celas das prisões.
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A sanção normalizadora atua sobre os pequenos atos humanos, exatamente nos espaços vazios deixados pelas leis e sistemas penais, regulando procedimentos sutis que dizem respeito a utilização do tempo, as formas de pronunciamento dos discursos, como os indivíduos usam o corpo e a sexualidade, etc. Ela atua em todas as ações que possam causar prejuízo a economia. Para tanto ela isola o infrator para que o “mau exemplo” não afete o todo e corrija a atitude considerada incorreta.
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Além das punições, esse mecanismo usa a estratégia de um sistema de recompensas com a função de classificar a conduta, isolando o comportamento. No entanto ela vai além ao permitir o reconhecimento de índoles e valores que devem ser cultivados ou abandonados. Mas longe de ser uma tecnologia de repressão é, antes de qualquer coisa e essencialmente, uma técnica voltada para uma operacionalidade: diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo que se deve chegar perto.
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Nesses termos, a sanção normalizadora busca homogeneizar os indivíduos, visto que a singularidade é o que leva a “comportamentos desviantes”. Mas não procura igualar a todos, posto que a sua eficácia reside na capacidade de normalizar e, ao mesmo tempo, manter a individualidade. 
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O exame é a junção da vigilância e sanção normalizadora, gerando três mecanismos essenciais da disciplina: inversão de visibilidade, arquivo e individualização dos casos.
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Diferente do poder real, agora quem fica em evidência é o indivíduo, sujeito a uma observação regular que o coloca em situação de exame quase perpétuo. A escola, o hospital, a fábrica e o quartel são espécies de aparelhos de exame ininterrupto.
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Forçado a se manifestar, o indivíduo é constantemente vigiado pela tecnologia do exame, viabilizando a manutenção de um arquivo sobre ele, cujos detalhes são documentados para serem utilizados quando necessário.
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O registro do exame permite manter a singularidade que aparece em cada individualidade, com seus desvios, traços particulares, aptidões e capacidades. O domínio desses elementos viabiliza a constante normalização dos indivíduos, que, como já foi dito, não significa uniformização, mas adequação a um dispositivo.
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O indivíduo objetivado transforma-se em um “caso” que pode ser utilizado como peça de um dispositivo estratégico em diversas situações. Nessa categoria entra a criança, o louco, o doente, o condenado, etc.
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Portanto a disciplina é um “dispositivo” cujos mecanismos permitem a realização das grandes funções disciplinares que constituem o sujeito moderno, deixando-o com características bem definidas: docilidade, utilidade e sensação de autonomia. Isso porque o poder disciplinar põe em funcionamento uma rede de procedimentos que atinge os aspectos mais sutis da realidade e da vida cotidiana dos indivíduos, podendo ser caracterizado com um micropoder que se capilariza e consegue se fazer presente em todos os pontos e níveis da rede social, tendo em vista a sua utilização e aproveitamento no sistema econômico emergente. 
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Assim é o indivíduo: alvo dócil ao poder; mas ao mesmo tempo seu veículo, agente e instrumento. É objeto e ação, ao mesmo tempo, pois a sua disciplinação depende diretamente de sua vontade e de sua participação ativa; no entanto, possui sua própria razão e, nesse sentido, “é também intersubjetivamente sujeitado pelo fato de que ele é governado externamente por outros e internamente por suas própria consciência
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O “cuidado de si”: Uma possibilidade de resistência.
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Para que o indivíduo se mantenha fora de um ambiente de dominação, ou tornando-a positiva, já que o próprio poder a produz para se manter em atividade, Foucault pensa que é necessário observar todos os detalhes, e ser extremamente prudente e empírico: só no seu exercício se pode decidir se a relação de poder é boa ou ruim. No entanto, não existe, na concepção do filósofo, um exterior ao poder, pois ele é o princípio de funcionamento do mundo contemporâneo. Mesmo assim, como é possível atenuar as investidas da sociedade disciplinar ou opor certa forma de resistência, já que o grande desafio hodierno, na perspectiva da genealogia realizada por Foucault, é produzir e reproduzir conhecimentos capazes de se insurgir contra a dominação que as próprias ciências do homem ajudaram a criar e a aperfeiçoar?
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Como resposta, Foucault se remete a “outro tipo de pedagogia, a um outro tipo de educação: àquela exercida sobre si mesmo, que chamará de subjetivação, contrapondo-a à sujeição, princípio que rege a escola em nossa sociedade”. Surge então as técnicas de si ou, como outros poderiam chamar, ética do sujeito, como uma forma de os sujeitos se constituírem numa prática reflexiva consigo mesmo. Há então uma mudança: de uma leitura política focada nos dispositivos e tecnologias do poder, para uma relacionada à ética, às condutas de si, inventando, assim, novos modos de subjetivação, novos estilos de vida individual, mas também social, para além das objetivações impostas pelas tecnologias de dominação do poder.
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A disposição dos alunos em círculo, diferente das tradicionais fileiras, abre a possibilidade de que todo estudante manifeste sua opinião e de que seja ouvido, porém, Foucault considera que as práticas educacionais libertadoras não têm nenhum efeito garantido. Por isso, “o importante não é que se aprenda algo ‘exterior’, um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do ‘educando’ consigo mesmo”. A questão não é ir atrás de um princípio fundamental e geral em que se assentaria o poder, mas examinar os agenciamentos em que se cruzam as práticas. Nesse sentido, a idéia não é dar questões fechadas como soluções ou para um bloqueio ao poder, mas fornecer propostas, questões abertas que permitam o exercício da dúvida e da crítica. Assim, “a fim de comportar-se apropriadamente, de praticar a liberdade apropriadamente, era necessário cuidar do eu, nao meramente para conhecer o próprio eu, mas também para melhorá-lo, ultrapassá-lo, dominá-lo.
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As práticas de si refletem uma maneira, definida pelo filósofo como conduta, de fiar a si mesmo uma auto-gestão. Com isso proporá o termo conduta como aquele que mais bem capta o que há de específico nas relações de poder. A conduta pode ser caracterizada pela maneira de conduzir os outros bem como a maneira de se conduzir a si mesmo. Para ele, será um bom governante aquele que souber governar (e bem), a si mesmo. Dessa forma, a reflexão funcionaria como uma ferramenta do indivíduo que, sabendo mais que os demais, colocar-se-á como um gestor de recursos humanos, ou um líder, como prefere o sistema das organizações modernas. No entanto, a noção primeira de sua ontologia do presente não pode e nem há de fato um modo, pelo seu caráter realístico e talvez absolutamente preciso ser descartada: mesmo observando das técnicas do controle de si para constituir-se a si mesmo, cabe-se demarcar a influência dos poderes do ramo das disciplinas, dos controles dos corpos individuais e coletivos, através do poder da norma e de suas sanções.
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Para uma cultura de si é preciso afirmar certa posição crítica perante o senso comum; não se deixar influenciar pelas opiniões sem fundamento e aprender, pela prática de si, a desaprender. Mais do que formar é preciso munir o indivíduo com a coragem e os instrumentos necessários para o combate, a fim de que ele não abra mão do que é mais importante: A liberdade de ter um domínio sobre si mesmo, de ser capaz de empreender perante a vida e de ação cada vez mais potente.
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A força ética da cultura de si é o trabalho de uma autonomia que garanta ao indivíduo ser o que ele é. Ser dono de si mesmo. Ter um controle das paixões constituindo a si mesmo somo “sujeito” que opera uma racionalidade em prol da liberdade.    
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Conclusão
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A ética ou o domínio das técnicas de si podem, talvez, amenizarem os efeitos do poder disciplinar sobre os corpos individuais, entendo a ética do sujeito como uma noção diferente da kantiana, universalista; a de Foucault é focada apenas no sujeito, nas práticas que possui consigo mesmo, na construção de sua própria subjetividade, na sua sujeição per se. O cuidado de si apareceria como uma conversão ao poder, ou seja, uma forma de controlá-lo. Essa é a proposta para uma possível investida contra o poder: uma inspiração foucaultiana caracterizada por uma postura de completa e permanente desconfiança sobre as formas discursivas ou de verdades instituídas, tomadas como naturais; um quadro parecido como o do próprio poder: se ele é constante, a reflexão assim também o deve ser; se é consentido, devemos problematizá-lo; se produz identidades, devemos moldá-las a nossa forma, colocando a vontade individual como parâmetro. A regulação sempre existirá no ambiente pedagógico, mas devemos repensá-las, no âmbito da educação, promovendo da auto-reflexão, pois o poder definitivamente não é o mal: compreendê-lo assim é desistir da liberdade, pois só há relações de poder onde há liberdade.
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Como Foucault nos mostra, ao estudar a Antiguidade greco-romana, para ser um bom governante é preciso primeiro governar a si próprio. Assim, as técnicas de si ou do eu, formas através das quais o sujeito se auto-constitui enquanto senhor de seus atos, poderiam ser caracterizadas como um exercício de si sobre si mesmo.
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Nem mesmo o próprio Foucault coloca a sua filosofia e seus diagnósticos como uma verdade pronta e estática. Uma pedagogia crítica de inspiração foucaultiana traz como um dos seus objetivos a reflexão, colocando o indivíduo numa situação de cuidado em não ser em demasia controlado – sendo esta talvez uma possível solução para essa questão – e para tanto, servindo como um contradomínio na ação pedagógica, onde a idéia de liberdade coloca os indivíduos para além dos estados de dominação. Cabe, no entanto, a cautela, pois o poder também possui sua positividade, que para ele está atrelada a um estado de visibilidade: será na própria relação que se definirá o lado produtivo ou não, de sua ação.