Para começo de conversa julgo necessário tentar compreender o
que é uma biografia. Segundo alguns dicionários, é um gênero literário em que o
autor narra a história da vida de uma ou várias pessoas. Desta definição decorre
a questão central deste artigo: é ou não correto alguém escrever sobre a vida
de outra pessoa, normalmente ilustre, sem o seu consentimento?
A principal objeção à produção de biografias não autorizadas talvez
seja a que sustenta que o autor pode distorcer os fatos causando sérios
prejuízos à imagem do biografado. Depois que a mentira se propaga seria difícil
desconstituí-la.
Mas qual seria o bem maior a ser preservado nesse caso? Para
alguns seria o direito de privacidade do biografado; para outros, o da livre
expressão de pensamento por parte do autor desse gênero literário. Mas prefiro
compreender essa pendenga por outro viés. Penso que o cerne do problema está em
outro lugar, isto é, no direito que a humanidade tem de ter acesso às informações
que lhe permitam formular juízos confiáveis sobre a realidade, mesmo que o
objeto seja a vida de uma pessoa proeminente.
Digo isso dessa forma, porque tanto o biógrafo como o
biografado – talvez este tenha mais motivação para tal – podem manipular as informações
conduzindo o leitor a uma compreensão errada dos fatos. Não há, em qualquer
campo da produção cultural, a garantia da veracidade das teorias. O equívoco é
parte essencial do discurso, mesmo quando elaborado de boa fé.
Por outro lado, haveria um prejuízo imensurável à humanidade,
do ponto de vista cultural, se personalidades como Nero, Calígula, Hitler e
Mussoline tivessem o poder de legar à posteridade informações unicamente sob
suas óticas. Mesmo Jesus, Buda e Maomé, cujo conhecimento de suas vidas privadas
mudou o curso da humanidade, não seriam tão interessantes sem os mistérios
decorrentes de várias interpretações sobre suas vidas, muitas até maledicentes.
Essas coisas ocorrem porque uma biografia, enquanto gênero
literário, é um trabalho teórico interpretativo e como tal sujeito a toda sorte
de manipulação, mesmo quando realizado para aferir a verdade dos fatos.
Por isso, parto do pressuposto de que toda e qualquer construção
teórica tem como escopo a humanidade, de todos os tempos históricos. E,
enquanto criação humana, não tem compromisso em relatar a verdade sobre um
determinado objeto, mas, simplesmente, um ponto de vista sobre ele. Assim funcionam
a Ciência e a filosofia. Cabe ao ser humano aceitar essa teoria passivamente ou
investigá-la para, quem sabe, propor novas formas de interpretação do mesmo
acontecimento. Para esse intento, muitos pontos de vista são indispensáveis.
É nesse contexto que o relato sobre a vida de um determinado
indivíduo deve possuir várias versões, autorizadas ou não, para que as gerações
seguintes tenham subsídios para encetar investigações sérias sobre esse
fenômeno. Como já foi dito, não se produz conhecimento sem multiplicidade e conflito
de ideias.
Quando existe apenas um discurso, a verdade depende de quem o
prolata; quando existem vários, depende de quem os ouve, interpreta e elabora
um novo discurso. A concentração de informações é prerrogativa de regimes
políticos totalitários, como sabiamente foi descrito na obra “1984”, de George
Orwell.
Para aqueles que vêem as biografias não autorizadas como uma
invasão de privacidade, oponho, simplesmente, a tese do direito à multiplicidade
de opiniões que a humanidade possui, própria dos saberes críticos, porque o
homem somente se constituiu enquanto tal quando outro homem dele discordou.
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